A taça de sorvete

JOSÉ CARLOS FINEIS – Não me sinto culpado por ter sido uma criança difícil, por um motivo muito simples: não existe criança fácil. O que existe é criança mais ou menos difícil. Também não perco tempo pensando em que categoria – se mais ou menos difícil – eu poderia ter sido classificado. Acredito (e obviamente minha opinião não conta, já que sou parte interessada) que fui difícil dentro do limite do suportável. Prova disso é que meus pais não enlouqueceram, nem se mataram ou saíram pelo mundo. Nos momentos mais difíceis, eram unidos, perseverantes, esperançosos. Desse tipo de gente que acorda decidida a recolher de cada dia a felicidade possível, assim como ele se apresenta.

Eu poderia ter sido um pouco menos difícil naquele verão, se não tivesse visto, por uma porta entreaberta, alguém tomando uma taça de sorvete no “reservado” da sorveteria do Quito. A sorveteria do Quito, no bairro em que cresci, exercia forte poder de atração sobre crianças num raio de muitos quilômetros. Era lá que elas iam – logicamente, não todo dia, pois aquele era um bairro operário – devorar casquinhas crocantes recheadas com o sorvete de massa que, na avaliação unânime da clientela, não era apenas delicioso: era o melhor da Via Láctea inteira, até porque não conhecíamos outros e não havia base de comparação.

Só lembro de partes da história, porque era muito pequeno, tinha quatro ou cinco anos. Armei um berreiro infernal porque estava com vontade de tomar uma taça de sorvete no reservado do Quito. E embora nossa família não fosse pobre a ponto de não poder comprar uma taça de sorvete, essa era uma aquisição extravagante, quase inimaginável, ainda mais para alguém que, pelo tamanho, poderia perfeitamente se contentar com uma casquinha. Os pais operários, sabe se lá com quais sacrifícios, haviam construído a casa própria e se desdobravam para que nada faltasse aos três filhos. Mas a taça de sorvete era um luxo — supérfluo e, de certa maneira, até um precedente perigoso — para nós.

Tudo o que lembro do reservado é que a entrada ficava na parede oposta à do balcão e que tinha uma placa óbvia na porta: “reservado”. Resumia-se a uma sala pequena com mesas e cadeiras. Quem comprava sorvete na casquinha ou no palito consumia no balcão ou, quase sempre, na calçada. Só tinha direito a usar o reservado (pelo menos, era assim que eu entendia) quem comprava uma taça de sorvete. Pensando bem, a taça devia ser cara, pois nem as crianças cujos pais tinham carro e viajavam com a família nas férias a consumiam. Em todo o tempo de infância e adolescência que vivi por ali, só vi o Quito vender duas taças. Uma foi a minha.

Não adianta me perguntar a cor das paredes, se havia muitas ou poucas mesas, se havia quadros ou vasos de flores. Lembro apenas que, depois de passada a tormenta e de uma conversa entre meu pai e minha mãe, à qual não tive acesso, fui para a sorveteria de mãos dadas com meu pai. Ele chegou, cumprimentou o Quito, pediu uma taça de sorvete e nos sentamos numa mesa do reservado, um de frente para o outro. Eu olhava tudo com curiosidade – alegre, mas um pouco deslocado. Meu pai olhava para mim com um sorriso e aquele olhar de carinho que lhe era tão característico, por trás dos óculos de lentes grossas e armação escura.

O velho Otávio parecia realmente feliz por estar ali. Havia prazer em seus olhos quando a taça foi colocada à minha frente pelo Quito. Não pediu nada para si. Apenas ficou me olhando e sorrindo, enquanto eu comia o sorvete. Não lembro se nos falamos alguma coisa. Se me conheço bem, eu devia estar um pouco envergonhado pela chantagem que fiz, chorando, gritando e ficando vermelho. Só tempos depois, já mais maduro, tive curiosidade de saber por que minha mãe não foi à sorveteria. Certamente, ela estava ocupada. Ou, simples como era, talvez tivesse vergonha de sentar-se no reservado. O mais provável é que comprar duas taças (a outra eles podiam repartir) era algo fora de cogitação.

Teria sido bom vê-los dividirem uma taça de sorvete, eles que raramente passeavam, que quase nunca se davam presentes. Tudo o que ganhavam era para a casa, a família, os filhos. Uma cepa rara de gente que ainda pode ser encontrada, mas que se conta nos dedos, por sua generosidade, compreensão, paciência, capacidade de se doar. Quisera eu, hoje, poder colocá-los num carro e levá-los para tomar um sorvete. Mas, veja só, eles não estão mais aqui. Minha mãe, dona Lola, partiu em 2001. Meu pai faleceu ainda antes, em 1989. Esta semana completaram-se 30 anos sem o sorriso amigo do velho Otávio.

Só o que posso fazer é agradecer aos dois por terem tido paciência com aquela criança difícil, que se tornou um adulto repleto de boas lembranças, amor e gratidão. Não lembro se disse “obrigado” pela taça de sorvete. De toda forma, agradeço agora, com um abraço imaginário e cheio de saudades. Não pelo sorvete em si – que, afinal, não era mais que isso, um mero sorvete –, mas por entenderem que crianças têm vontades, e a meu pai, particularmente, por me pegar pela mão e me levar ao reservado, e por ficar ali sorrindo enquanto eu realizava meu sonho, feliz por minha felicidade, contente com minha alegria.

Sorocaba, inverno de 2019

Imagem de matazu por Pixabay 

2 comentários em “A taça de sorvete

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  1. Que retrato, Fineis! Maravilhoso.

    Tão sutil e poderoso, com um ritmo incrível, de memória, daquelas de revisitação necessária.

    Sempre bom ler suas palavras.

    Abraço!

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  2. Grande Pierotti,

    Muito obrigado pela leitura e pelas palavras de incentivo.

    Este texto foi mais difícil para mim, porque os personagens são reais. É mais fácil falar de personagens inventados!

    Mas foi uma forma de resgatar uma memória importante para mim, e que fala da generosidade e paciência dos meus pais.

    Era mais fácil para eles me encherem de cintadas! Mas eles eram pessoas incríveis.

    Muito obrigado. Grande abraço!

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