Uma flor que se devora: a alcachofra chega à mesa e é a estrela principal da tradicional Expo São Roque, que começa nesta 6a., 4/10

MARCO MERGUIZZO

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ALCACHOFRA

(Poema de Maria Lúcia Dal Farra)

Não é em altura que seu arbusto se ombreia com o pinheiro: é pela fruta.
Íntima amiga da geometria,
do pinho tão só se distancia
pela recusa à agreste armadura.
Nenhum lampejo de indiferença
machuca-lhe a vestimenta:
antes a luz emprega no fabrico da alma
tenra (que lateja),
parente do alegre bem-me-quer,
do espelhante girassol.

Pertença da floricultura e da boa mesa, ornamenta o paladar
com a lembrança das nascentes:
não são de lâmina as escamas,
mas (degustáveis) dádivas mediterrâneas
dispostas no coração em tranca
 Apenas pequenas setas mantém (em íntima contenda)
a provocar torneios entre língua e dentes.
– Cota de cavaleiro andante, em que terna demanda atuas?

Silêncio de bronze
sobre as teias de aranha das pupilas.
Nada palpita no rosto tátil nem mesmo um poro.
Deslizo pela superfície imberbe
a gana de eriçá-la:
mas (munida apenas da arremetida suicida do touro)
sua mudez desarma o esforço.

Urna cerrada como o sol,
fui, foste, fomos,
e tudo ficou retido na divisa
(no escudo)
na nitidez desse rosto acuado
– dessa carranca com que hoje enfrento os mares.

Nos versos acima de Maria Lúcia Dal Farra, o retrato poético da alcachofra, tentação que chega à mesa agora, juntinho com a nova estação do ano, é preciso: “Não é em altura que o seu arbusto se ombreia com o pinheiro – é pela fruta. Íntima amiga da geometria, do pinho tão só se distancia pela recusa à agreste armadura.”

Seja pela poesia que esta flor comestível típica da primavera inspira, seja por seus atrativos e atributos culinários – o que inclui o prazeroso ritual de saboreá-la lentamente, uma a uma, pétala por pétala -, a Cynara scolymus, o nome científico da alcachofra, é uma preciosidade etíope de primeira grandeza apreciada desde a Antiguidade e sob as mais variadas formas. Segundo uma lenda ancestral, Cynara teria sido uma bela e sedutora jovem que rejeitou Zeus, a divindade toda poderosa e bambambã do Olimpo grego, e que, por conta disso, teria sido transformada nessa planta.

Com molho de manteiga, de azeite e limão, mostarda ou vinagrete, recheada, gratinada ou ainda como protagonista de risotti, ragùs, pizze, patês e tortas, esse manjar da gastronomia mundial esbanja versatilidade. A partir desta sexta-feira, 4 de outubro, ela brilhará no prato como estrela principal em múltiplas preparações durante a 27ª edição da tradicional Expo São Roque Vinhos e Alcachofras – a antiga Festa do Vinho da cidade de fama nacional -, que acontece no município vizinho, situado a menos de 30 minutos de carro de Sorocaba, até 10 de novembro. (Veja, logo abaixo, as novidades e as atrações programadas para este ano).

Também em diversos locais do conhecido Roteiro do Vinho de São Roque – um trajeto de 12 km que reúne vinícolas, adegas, restaurantes, bares, pousadas e vários estabelecimentos para se comer e petiscar – também vão oferecer, durante esse período, a iguaria ultrafresca recém-colhida das plantações da região direto para a panela e a mesa.

Trazida ao Brasil na segunda metade século XIX pelas mãos de imigrantes europeus – especialmente italianos, os seus principais divulgadores mundo afora -, a alcachofra é colhida na abertura da primavera, para deleite dos fãs da iguaria. Embora a safra vá até dezembro, a primeira colheita é considerada a melhor delas, por oferecer frutos mais saborosos, tenros e macios. Assim como pelo aspecto lúdico ao matar saudades do seu sabor inconfundível e do tempo de espera para poder devorá-la agora nesta época do ano.

De coloração violácea e púrpura, sua flor, extremamente fotogênica, cresce em arbustos e é pura sedução. O tempo de cultivo, sabe-se, é um fator crucial para a colheita da alcachofra, já que ela precisa ser cortada antes que floresça totalmente, caso contrário, torna-se dura e imprópria para o consumo.

As folhas, saboreadas uma a uma, são a parte comestível, ao lado da base dos botões, também conhecida como o “fundo” ou o “coração” da alcachofra, que são o ponto alto e o grand finale de sua degustação. Considerada uma iguaria, essa parte da alcachofra é o “pódio de chegada” do ritual, uma unanimidade entre os gourmets por ser a parte mais delicada e saborosa, a mais tentadora e desejada – e por conseguinte a mais cara também.

Terroir são-roquense
A impactante cor violeta da flor da alcachofra: pura sedução (Arquivo)

Como moro em São Roque, onde as alcachofras se adaptaram esplendidamente há mais de um século, tenho o privilégio não só de vê-las florescer no campo como devorá-las desde as primeiras semanas de setembro. Hoje, o município responde por cerca de 1/3 da produção do estado de São Paulo. Já as vizinhas Piedade e Ibiúna, além de Capão Bonito, na região de Itapetininga, respondem pelo restante. Em outras partes do Brasil, só Petrópolis e Teresópolis, na serra fluminense, produzem a flor comestível, também em pequena escala.

Em São Roque, elas podem ser encontradas na zona rural, incluindo as de cultivo orgânico. Em geral, são plantadas por produtores de pequenas e médias propriedades, diferentemente de outras regiões agrícolas onde são cultivadas em grande escala – por sinal, é uma peculiaridade e diferencial da produção e terroir são-roquenses, como os do tradicional bairro de Canguera, onde está inserido o território do Roteiro do Vinho da cidade -, e comercializadas nas feiras livres locais pelos próprios produtores ou feirantes, com preços que costumam variar entre R$ 3,00 e R$ 10,00, dependendo do tamanho da flor.

No caso de ingredientes delicados e perecíveis como a alcachofra, a qualidade e o frescor são vitais. Saber escolhê-las, portanto, tem lá seus segredinhos. A alcachofra deve ser sempre superfresca, de preferência recém-colhida. As folhas e o talo, por exemplo, devem estar firmes e bem fechados. De outro modo, deve-se evitar exemplares com folhas muito abertas, que apresentam coloração interna marrom e uma consistência molenga: tudo isso indica que já passaram do ponto.

Outra providência preciosa na hora de comprar é não deixar o vendedor cortar o talo muito rente, já que isso pode comprometer a integridade do fundo do vegetal, por causa das cerdas que se formam no cabo da flor. E uma última dica pessoal: prefira as alcachofras de tamanho médio, mais delicadas, e cujas folhas são mais macias. As grandes, embora sejam sedutoras e encham os olhos dos comilões desavisados, exigem um tempo maior para cozinhá-las e mesmo assim nem sempre se tornam mais tenras e apetitosas.

Origem africana
Alcachofra: berço e sabor originalmente etíopes (Foto de Arquivo)

Embora conhecida desde a Antiguidade por gregos e romanos, a alcachofra foi levada definitivamente ao Velho Mundo só na Idade Média, por volta do século XV, pelos invasores mouros, a partir da Etiópia, norte da África, de onde seria nativa. Adaptou-se admiravelmente nos países mediterrâneos, pois se desenvolve bem em regiões de clima temperado e com altitudes superiores a 700m.

Da cozinha árabe, que também originou as almôndegas (ou al-banadiq), foi que a palavra alcachofra se originou. Al significa “Ser Supremo; o Todo-Poderoso”, como Al-lah. Do Oriente Médio, esta festejada flor comestível viajou até o Velho Mundo. Lá ganhou vários nomes. Na Espanha, foi batizada de berro. Na Itália, de carciofo. Na França, de artichaut. E na Inglaterra, de artichoke.

Como vivo na região de São Roque desde meninote, como alcachofra desde sempre. No passado era raro encontrar alcachofras para comprar. Era um alimento considerado exótico e pouco conhecido. Hoje, ela é bastante popular e apreciada in natura nessa época, período no qual exibe todo o seu frescor, ou ao longo do ano todo, em conserva. Curto alcachofra de todo jeito. E do modo mais simples de prepará-la: cozida na água, mais azeite, limão e sal, mergulha-se a seguir folha a folha no molho vinagrete, na manteiga derretida com alho ou com um bom ragú feito à base de carne bovina e molho de tomates, esta última a minha versão comfort preferida.

Sempre achei o máximo a preparação e todo o ritual em saboreá-la. De fato, a anatomia da alcachofra parece favorecer esse “protocolo” à mesa mas não há nada de complicado na hora de apreciá-la. Ao desfolhá-la, come-se apenas a parte mais carnuda da pétala, raspando-a com os dentes. A seguir, retira-se com as mãos os espinhos – que não espetam, apenas não são agradáveis de mastigar – que protegem o fundo da alcachofra. O coração é o momento maior, uma recompensa aos perseverantes. Todo o processo é quase uma celebração.

Uma curtição mesmo em que toda a família, os amigos e os comensais são convidados a banquetear-se, “disputando” quem vai chegar primeiro ao almejado coração da alcachofra… ulalá! Mas o segredo mesmo é degustar cada momento, raspar com os dentes lentamente cada folhinha, com cada um ditando o seu próprio ritmo, até devorá-la por completo, para ter, ao final, o máximo de prazer, sentindo aquele gostinho de quero mais, mesmo com os dedos melecados do molho e temperinhos.

Alcachofra: bom pro paladar e pra saúde

Há mais de 2.000 anos, os antigos gregos e romanos já defendiam o consumo da alcachofra devido aos benefícios medicinais que proporcionam à saúde humana. O retrogosto levemente amargo das folhas, por exemplo, estimula as secreções digestivas. Da água do seu cozimento faz-se um excelente chá diurético.

Além de saborosa, a alcachofra é muito recomendada hoje em programas de emagrecimento. Com baixa concentração de gordura saturada e colesterol, é rica em fibras, vitaminas e minerais. A flor contém vitaminas que incluem tiamina, riboflavina, niacina, ácido fólico e múltiplas vitaminas, como as A, B6, B12, C, D, E e K. Ou seja, ela pode ser considerada um superalimento sob o aspecto químico-nutricional.

Os fitonutrientes que ela possui, por exemplo, promovem ação antioxidante no organismo. Os antioxidantes contidos nas alcachofras frescas oferecem uma gama de benefícios à saúde que vão desde a prevenção do câncer e suporte ao sistema imunológico, até a proteção contra doenças cardíacas.

Em um estudo realizado recentemente pelo Departamento de Agricultura dos EUA e publicado no American Journal of Clinical Nutrition mostrou que uma porção de alcachofras proporciona maiores benefícios antioxidantes por porção do que muitos outros alimentos tradicionalmente considerados antioxidantes, como chocolate, mirtilo e o vinho tinto.

Outra substância nela contida, a ciarina, ajuda a melhorar as funções do fígado. Sobre essa substância há, porém, um senão gastronômico: por deixar um pronunciado sabor doce na boca, não há vinho que vá bem com alcachofra. Isso à parte, há presença de vitaminas do complexo B mais minerais como ferro, cálcio e fósforo.

Em resumo: além de saborosa e sedutora ao paladar, a alcachofra faz muito bem à saúde e, melhor, não engorda devido à boa quantidade de fibras e baixo valor calórico. Portanto, caia de boca e esbalde-se até o final de novembro, quando termina a temporada destas delícias cultivadas logo ali em São Roque, bem pertinho daqui de Sorocaba.

À mesa com Adoniran

Com o tema “Tributo a Adoniran Barbosa”, a Expo São Roque Vinhos e Alcachofras deste ano homenageará o compositor, cantor, ator, humorista e pai do samba paulista João Rubinato (Jaú, 1910 /São Paulo, 1982), o nome verdadeiro do autor dos clássicos “Samba do Arnesto”, “Trem das Onze” e “Saudosa Maloca”, que foram eternizados por sua inconfundível voz rouca.

Com um menu completo e variado para os fãs da iguaria, que inclui uma série de atrações à mesa e fora dela também para toda a família, o evento contará com mais de 60 expositores, dentre eles, 15 produtores locais de vinhos e sucos de uva, 30 artesãos, além de uma ampla programação gastronômica e cultural, com destaque para as oficinas culinárias gratuitas, realizadas sempre aos sábados e domingos, às 11h30 e 14h30, com chefs de cozinha locais que apresentarão receitas à base de alcachofra, além de degustações e harmonizações dos rótulos são-roquenses capitaneadas no Espaço Gourmet por sommelières convidados.

Fotos: Banco de Imagens e Divulgação

Também estão programadas apresentações de teatro musical com o Grupo Dionísio de Teatro e Dança, shows itinerantes de bandas locais, a tradicional pisa da uva, bailes da saudade, bingos, além de playground para a garotada e, claro, uma ampla praça de alimentação com mais de 20 restaurantes.

A Expo São Roque é organizada pelo Sindicato da Indústria do Vinho de São Roque (Sindusvinho) e tem o apoio da Prefeitura da Estância Turística de São Roque.

Pisa da uva: tradição lusitana que marca presença na Expo São Roque
Serviço

Data: 04/10 até 10/11 (Sextas, sábados e domingos). Local: Recanto da Cascata (Av. Antônio Maria Picena, 34, São Roque, SP, tel. (11) 4712-3231. Horário: 9h/19h. Ingressos: Inteira R$ 35,00 e Meia 17,50. Compra de ingressos pelo site: www.exposaoroque.com.br

E MAIS:
PARA OUVIR E CURTIR:
Samba do Arnesto (Adoniran Barbosa) – 1952
Trem das Onze (Adoniran Barbosa) – 1964
Saudosa Maloca (Adoniran Barbosa) – 1951
MARCO MERGUIZZO 
é jornalista profissional 
especializado em gastronomia, 
vinhos, viagens e outras 
coisas boas da vida. 
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toda quinta-feira. 
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