Marcello Fontes
Dando início às atividades como blogueiro do Coletivo Terceira Margem, achei que seria uma boa explicar um pouco do significado do título que resolvi dar a ele. De início, é importante confessar que este é o nome de um artigo escrito pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908 – 1961), que formou, juntamente com Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e outros, o que ficou conhecido como “geração existencialista” dos anos 1940 e 1950. Neste artigo, que deveria ser a introdução para uma obra coletiva de nome “Os filósofos célebres”, Merleau-Ponty busca explicar o lugar e o não lugar da Filosofia e a relação desta com a sua própria história do modo mais claro e didático possível para um filósofo, que não é uma figura muito afeita ao didatismo nem a simplicidade por razões que outra hora tentarei explicar.
Acho que é bom começar nossas prosas sobre Filosofia esclarecendo que, de fato, não há algo como “a Filosofia”, por mais que nos refiramos assim a esta forma de conhecimento tantas e tantas vezes, mas sim filosofias, no plural. E isso se deve ao caráter não científico daquilo que se chama Filosofia. Sim, é isso mesmo: apesar de rigorosa, metódica e analítica, Filosofia não é Ciência. Até mesmo alguns filósofos já se incomodaram com isso e quiseram, a todo custo, tornar Filosofia algo científico. Immanuel Kant, no prefácio da sua “Crítica da razão pura”, demonstra todo seu inconformismo com o fato de a Filosofia não ter encontrado aquilo que chamou de “caminho seguro da Ciência”, ou seja, definido um método unânime e um discurso único. Pois assim é a Ciência: ao menos por um determinado período, existe uma normalidade e universalidade nos conceitos. A mesma física aprendida em Sorocaba hoje é ensinada e praticada em Antananarivo. Constantemente há debates e a pesquisa, a despeito daqueles que acham que livros tem muita coisa escrita, não para; eventualmente haverá aquilo que alguns estudiosos chamam de revolução científica, que é quando efetivamente um paradigma é superado, ultrapassado ou contrariado por um novo. Este fato, aliás, deveria ser explicado aos terraplanistas, visto que a ideia de uma terra plana foi superada pela ciência há cerca de 2300 anos, com Eratóstenes. E é justamente por esta noção de superação e constante renovação que podemos nos referir à Ciência sempre no singular.
Mas não é assim com aquilo que chamamos de Filosofia. A Filosofia não se supera, não consideramos os conceitos filosóficos antigos como ultrapassados ou, para usar uma expressão cara aos críticos literários e musicais, datados. Aristóteles não superou Platão, mesmo dele discordando. Descartes não tornou Agostinho ultrapassado. E Merleau-Ponty, o cara cujo artigo inspira o título de nosso blog, jamais teve a presunção de tornar seus conceitos filosóficos superiores aos dos filósofos que o antecederam. Filosofia é acima de tudo complementaridade e também é relação com sua própria história. Assim, é mais correto falar na Filosofia de Platão, de Kant, de Merleau-Ponty: filosofias, portanto. Pode-se, como quis Kant, tentar uma unificação baseada em características comuns, mas o fato é que não raro as filosofias são tão diversas quanto numerosas. Isso por vezes incomoda as pessoas, leva a uma ideia de que a Filosofia é uma espécie de “vale-tudo” ou uma terra de ninguém. Mas aquilo que é o seu maior “defeito” à vista de muitos é sua grande e paradoxal qualidade: a Filosofia não tem um território, um limite, ou mesmo um método único; não é escrita de uma única forma, mas através de poemas, cartas, diálogos, tratados, aforismos, confissões, artigos e até romances. Nada é mais difícil de afirmar, à semelhança daquilo que puristas ou saudosistas fazem em relação à arte, à música ou à literatura, que “isso ou aquilo não é Filosofia”. Pois ela está em toda parte, ao mesmo tempo em que não está necessariamente em nenhuma.
Mas então realmente vale tudo? Qualquer coisa poderá ser considerada Filosofia? O que pode, de certa forma, dar um índice de consistência filosófica a um punhado de arrazoados ou argumentações? Uma das coisas que caracteriza a Filosofia é a sua relação com sua própria história. Desde sempre, filósofos dialogam, divergem, contradizem, complementam ou fazem referências a outros filósofos e ao que foi construído pela História da Filosofia. Esta história construiu marcos pelos quais a posteridade não cessaria de passar. Por mais discordante que meu pensamento seja das ideias de Platão, por exemplo, não posso ignorá-lo. Ainda que seja muitas vezes virtualmente impossível o domínio de todas as filosofias, fazer filosofia é de certo modo também esta busca utópica. Certa vez ouvi da boca de uma mestra que “uma vida não basta para a Filosofia”. Portanto, por mais original ou inédito (sé é que isso realmente existe) que um filósofo possa ser, ele sempre estará, de modo mais ou menos consciente e proposital, referindo-se direta ou indiretamente a outros filósofos.
Igualmente, o que torna algo filosófico é, nos dizeres do filósofo brasileiro Demeval Saviani, ser radical, rigoroso e de conjunto em relação ao enfrentamento dos problemas que a realidade apresenta. Radical, porque vai às raízes dos problemas dos quais trata, fugindo da superficialidade e do simplismo. Rigoroso, pois por mais que não haja algo como o método filosófico único, é preciso ser coerente e lógico com aquilo que ainda que originalmente se proponha. E de conjunto, pelo fato de que não se pode ignorar o todo de uma questão, isolando-se um detalhe sem fazer relações com as demais partes dela.
Desse modo, fica o leitor avisado de que o nosso blog seguirá nessa toada, confrontando filosoficamente a realidade por caminhos sinuosos, sem um tema único ou fechado, com considerações que poderão tomar fatos e exemplos dos mais diversos, desde os mais atuais àqueles que muitos talvez considerem pouco relevantes, conversando mais ou menos com outros pensadores, andando aqui, ali e acolá, transitando em toda e em nenhuma parte necessariamente.
- Para saber mais sobre o pensador que dá nome por meio de seu artigo ao nosso blog, confira: https://farofafilosofica.com/2018/02/06/merleau-ponty-5-livros-para-download-em-pdf/. O artigo “Em toda e em nenhuma parte” está na obra “Signos”.
Pensar é viver.
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Parabéns meu amigo, vida longa.
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Você traria uma maior aprofundacão do assunto em sala de aula?
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Certamente.
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Marcello, lendo seu discurso, que também tem ares de narrativa – boa de ler – , lembrei de “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, de Marshall Berman.
Para dizer da importância de estarmos atentos ao movimento do pensamento, difuso, complexo, inconcluso – como vc destaca -, e que reflete bem os tempos que vivemos, de uma riqueza social, cultural e política imensa, mas tempos esses feitos por humanos….
Abraço, e grato por seu trabalho.
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Eu gosto de filosofia, o que não quer dizer que saiba alguma coisa consistente sobre ela. Seus textos com certeza são um bom convite pra aprender mais e fazer o que é tão necessário: pensar, pensar e pensar. Vida longa ao Blog.
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Fico feliz por meus textos serem convidativos ao pensar. Obrigado. Essa é a intenção.
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Que texto maravilhoso, inspirador. Gostei especialmente quando diz que “não é coisa pra uma só vida”. Parabéns professor.
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