FREDERICO MORIARTY (Blog Pipocando la Pelota) – Não posso lhe dizer com palavras diferentes das que escrevi, quando você explica uma poesia, ela se torna banal. Melhor que a explicação é a experiência dos sentimentos que a poesia pode revelar a uma alma suficientemente aberta para ouvi-la.
Essa fala acima é de Pablo Neruda ao carteiro Mario no filme “O carteiro e o poeta“ (Il Postino, o nome no original), por sua vez, inspirada no livro homônimo publicado, em 1985, pelo escritor Antonio Skarmeta. A maravilhosa película italiana mistura personagens reais, situações perfeitamente plausíveis com imaginação. A impressão que nos passa é que aqueles fatos realmente aconteceram. Não conseguimos distinguir a realidade da ficção.

O mestre dessa mistura na literatura foi Honoré de Balzac. Personagens reais e fictícios, amigos pessoais, detratores do célebre francês, antigos colegas de trabalho do cartório, a família toda do “pai” da “Mulher de Trinta Anos“, além de uma miríade de personagens, que ao longo de 88 romances, contos médios e pequenos, nos enganam, encantam e permitem iluminar toda a primeira metade do século XIX. Talvez a maior obra da literatura mundial, um painel da sociedade e dos costumes franceses aparecem na “Comédia Humana”.
No cinema, um filme anterior ao “Carteiro e o Poeta” também abusou desse recurso: o premiadíssimo “Forrest Gump“. Mas as confluências entre realidade e ficção eram muito mais definidas pelas tecnologias e suas belas trucagens com as imagens.
O diálogo entre o poeta chileno Neruda e o simplório carteiro de um vilarejo pobre da Itália dos anos 60 é a continuação de uma educação sentimental. Neruda primeiro ensinou a importância da metáfora na poesia. Na passagem citada acima, Mario questiona sobre um verso do poeta das mulheres (ou do povo, como queria o chefe comunista do carteiro). Seria metáfora? Não. O que seria, então, pergunta o moço em aprendizado.
É a abertura para Neruda revelar o segredo da poesia: sentir. Por isso dá tanto trabalho escrever. Quando sai o verso, a música que brota do sentimento, ela vem de uma vez só. A palavra vai se encaixando na cabeça da gente, vai tocando uma sequência ilógica e bela, a pele de Marisa vira cereja, a distância dela é uma tempestade, a depressão que sinto se amplifica, me desespero, tento me matar, rasga tudo aqui dentro. Não há palavra certa, não há verso medido, não quero cortar nada, a vida já me cortou tanto.
João Cabral rogaria pragas. Thomas Edison afirmaria que talento é 1% de inspiração e o resto, transpiração. A academia certamente diria que isso é pobreza mental, falsa literatura e nunca jamais poesia. Mas eu, na minha inutilidade, acredito que a poesia seja muito de sofrimento, um outro tanto de aprendizado (lendo os Nerudas, Baudelaires, Drummonds, pessoas da vida) e pouco de exercício verbal. É a única metralhadora que possuo. Quando dou tiros medidos, acerto o alvo, mas não faço chorar a viúva. Não se educa sentimentalmente pela química das substâncias. Não se constroem metáforas com algoritmos.

A educação formal me decepciona. Na primeira prova de Filosofia que fiz pra uma instituição imensa e tradicional de ensino, entrei em pânico quando mostrei, antecipadamente e contra a minha vontade, a dita cuja avaliação para a diretora e a orientadora pedagógica da escola.
Numa das passagens, coloquei uma música de Chico Buarque, “Construção”. Um clássico do maior compositor da nossa MPB. Poeta, escritor e dramaturgo, Chico escreve todos os versos com palavras proparoxítonas no final. As mais raras na língua portuguesa. A música descreve à perfeição a vida sofrida de um brasileiro pobre, trabalhador da construção civil. Um operário que não é nada, inexiste como pessoa e termina a música estatelado no chão, solitário, morto em acidente de trabalho.
A realidade cruel e bruta do Brasil nos anos 70 e que ainda persiste. Uma reflexão profunda sobre a existência e o mundo do trabalho. Surpreendentemente fui obrigado a retirá-la. Segundo as educadoras, no ano anterior, um aluno se suicidara pulando do prédio em que morava. A letra do Chico falava da morte na queda dum prédio. Muito perigoso isso.
Tentei mostrar que não havia relação nenhuma entre o operário que morreu na construção atrapalhando o tráfego (numa linguagem subjetiva) e a tragédia depressiva de um adolescente de classe média (do mundo objetivo). Mas não teve jeito – fui censurado. Caneta preta na minha prova. O que mais doeu, porém, foi ouvir que a poesia era muito “denotativa”. Mario, semi-alfabetizado, simplório, entendia muito mais de poesia, de vida e de metáforas do que os altos dirigentes educacionais nacionais.
O amor me fez ver que não adianta brigar contra sua alma (e isso a poesia sempre me disse). E meu corpo precisa do amor como da poesia. Os lugares, pessoas e superiores que me cercam não podem usurpar da minha capacidade de sentir. As ideologias, contratos e bulas não devem impor a ausência de liberdade ao meu pensamento.
Quero é fazer versos como a bater de asas: forte, direto, mas sem destino, a não ser o da sobrevivência do instinto. E quero borrar o papel com a tinta suja e a caneta emprestada, assim como Mario fez com a belíssima Beatrice Russo, sua amada. O carteiro, sem saber como fazer metáforas para sua paixão, apropria-se de um poema do mestre chileno. Pablo Neruda, poeta chileno, agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura nos anos 60, comunista de carteirinha não podia reclamar. Toda propriedade é um roubo.
Na engraçada cena em que a avó, que criara a moça simples e pura do vilarejo (na visão da avó), vai tirar satisfação com Neruda, pois Mario se escondera em casa daquele, logo após o sermão da senhora e a retirada dela de cena, o poeta questiona o carteiro sobre o roubo do poema. Mario, sabiamente, profetiza o que é ser poeta:
A poesia não pertence aos que a escrevem, mas aqueles que precisam dela.
Uma aula de sensibilidade e de consciência da nossa triste realidade social e educacional. Excelente, professor Frederico!
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Obrigado amigo e seguimos tocando o barco
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