( O blog inicia uma série de 6 textos sobre a identidade feminina. Teremos Lilith, depois as mulheres na antiguidade, os arquétipos femininos, duas visões literárias: uma com Machado de Assis e outra com Nelson Rodrigues. O ciclo termina com bruxas e feiticeiras. Não percam nenhum capítulo!!!)
FREDERICO MORIARTY – Lilith, a primeira mulher. Lilith, a mulher coruja. A serpente que tentou Adão. A dama da noite. Parteira dos demônios. Lilith, a Lua Negra. Lilith, mulher livre e independente. A rainha das lutas e da identidade feminina. Lilith, a mitologia esquecida.

Entre sumérios e mesopotâmicos já existia a deusa Lilith. Deusa das profundezas e da noite. Para os hebreus antigos ela era a personificação da serpente. Nas traduções bíblicas medievais, muitos a enxergam no próprio Genesis. Vejamos as passagens abaixo:
Deus criou o homem à sua imagem e semelhança; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher; ( Genesis 1:27)
O Senhor Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só; vou dar-lhe uma ajuda que lhe seja adequada…( Genesis 2:18)
E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem ( Genesis 2:22)
Disse então o homem: Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porque do homem foi tirada (Genesis 2:23)
Nas duas primeiras passagens bíblicas fica claro que Deus criou o homem e a mulher ao mesmo tempo. Seria até ilógico se compararmos aos outros animais. Com o verbo ele criou dois seres de cada espécie. O ser humano não poderia vir só. Numa sequência, o livro sagrado diz que da costela de Adão nasceu a mulher. Nesse ponto começa a germinar a ideia de uma outra mulher. Se o Criador fez o homem e a mulher a sua imagem e semelhança, como poderia a primeira mulher ser parte de Adão? Somente seria possível se a primeira fosse outra. Lilith seria a primeira mulher. Criada à semelhança em Deus. Única e totalmente igual ao primeiro homem. Eva seria apenas a segunda mulher. E um ser já nascido do desgosto e da revolta de um Adão que se sente superior. Na última passagem vemos a frase ” e esta sim”. Ou seja, Eva sim é uma mulher correta, pois veio de Adão e como tal, inferior. Lilith é equiparada ao homem, pois nascida da mesma matéria e espírito divino. Eva é carne e osso de Adão. Submissa. Devedora eterna do provedor macho. Lilith é igualdade e conflito. Libertação e oposição ao homem.
Lilith aparece literalmente na Bíblia Hebraica do séc. VIII. O livro de Isaías em seu capítulo 34 canta nos versículos 12 a 17:
(12) Seus nobres não existirão mais, nem reis serão proclamados ali; todos os seus príncipes se foram. (13) Seus castelos serão cobertos de espinhos, e suas fortalezas com cardos e sarças. Ela se tornará morada de chacais e assombração de avestruzes. (14) Os gatos selvagens se encontrarão com animais do deserto, os sátiros chamarão um ao outro; Lá Lilith descansará e encontrará para si um lugar para descansar. (15) Ali a coruja-baleia deve nidificar e pôr ovos, chocá-los e recolhê-los à sua sombra; Lá as pipas se reunirão, ninguém estará perdendo sua companheira. (16) Olhe no livro do Senhor e leia: Ninguém faltará; porque a boca do Senhor o ordenou, e o seu espírito os reuniu ali. (17) É Ele quem lança o lote para eles, e com as mãos marca as suas partes dela; Eles a possuirão para sempre
Lilith agora recebe as pragas típicas das pecadoras. Coruja-baleia é o apelido da deusa da noite. Uma tradição cristã a coloca como a serpente. Lilith tentou Adão não com o fruto proibido como maçã; a verdadeira tentação foi o sexo. Proibido é o adultério ou a bigamia. Quando Adão diz ” esta sim”, concluiu-se ser Eva sua única esposa, a escolhida. Ter relações com Lilith seria traição. Mas se a primeira mulher também é centelha de Deus, Adão teria duas esposas. Claro, a rejeição a uma e outra solução é total pela Igreja. Lilith não existe nas tradições religiosas hebraico-cristãs. Nos mitos que cercam Lilith, há duas imagens ligadas ao sexo. Ela questionava Adão por não querer ser submissa. O homem queria sempre ” estar por cima” ou ” por trás “. Lilith queria a liberdade sexual, escolher as posições que mais lhe dessem prazer. Não é à toa que logo sai da literatura sagrada e vai para a profana. Lilith não é só expulsa do Paraíso, é carregada por 3 anjos para as profundezas. Vira demônio. Parteira dos súcubos e íncubos. Os demônios noturnos que povoam os sonhos dos homens e mulheres e lhes provocam excitação sexual e poluções.

Lilith é apropriada por rituais satânicos, tradições heréticas, bruxas, feiticeiras. Escorraçada por Adão, castigada por Deus, o mito se adapta a realidade para tornar-se símbolo de uma mulher poderosa, mística e dominadora. Os subterrâneos tem sua Deusa. Lilith é sedutora, A mulher que suga o homem para conseguir seus objetivos. Espalhou-se pela terra e expandiu sua identidade durante o Medievo. Representada por Rafael, Michelangelo e Tintoretto na Modernidade,

Lilith, com seu individualismo e vontade própria encantou o Romantismo. Goethe a coloca no Fausto:
Fausto: Quem é esta aí?
Mefistófeles: Dê uma boa olhada.
Lilith!
Fausto: Lilith? Quem é aquela?
Mefistófeles: É a esposa de Adam, a primeira. Cuidado com ela. O orgulho de sua beleza é seu cabelo perigoso. Quando Lilith o enrola em torno de homens jovens, ela não os solta novamente…
Lilith tem longos cabelos vermelho-alaranjados. A cor do fogo. O pecado dominando e aprisionando homens e mulheres. Avança no século XX reinterpretada pela psicanálise. Lilith agora é um símbolo positivo, da introspecção. É a realização do prazer inconsciente. Eva, a realidade e as neuroses. O prazer não é demoníaco. Lilith é desejo e libertação. Toda mulher traz uma Lilith em si. Toda mulher decide qual a relevância de sua Lilith. Nesse sentido, Lilith é a primeira mulher. Sem submissão ao homem, sem reprimir seus instintos.
A imagem forte dessa Lilith chega à cultura popular. Em 1974 a banda inglesa Genesis (curiosa coincidência do nome com a origem de Lilith no Livro Sagrado) compõe um rock progressivo em sua homenagem. Anos depois, o diretor Luc Besson cria uma personagem que é superior a tudo. A união de todos os elementos. No filme O quinto elemento temos uma mulher belíssima, capaz de seduzir a todos sem artimanhas. De cabelos vermelho-alaranjados como Lilith. O nome dela é Leeloo. No seriado Lucifer, na sua 4° temporada, Lilith é citada como ” a mãe de todos nós”.

Por toda essa história rica, essa iconografia variada, Lilith torna-se um mito forte da identidade feminina. Atemporal. Um mito de libertação, independência, de prazer, de não submissão. Uma identidade que se preciso for, engole o macho ou apenas o reduz a pó. Lilith tem o tempero certo do século XXI.
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Eu amei essa postagem!
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Obrigado!! Acho que irá gostar dessa de hoje:
https://terceiramargem.org/2020/07/12/os-arquetipos-femininos/
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Que maravilha de post!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Eu me identifiquei bastante
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Agradeço demais!!
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