Velórios da vida

CARLOS ARAÚJO (Blog Outro Olhar) – Entre as nossas emoções mais dramáticas, o velório ganha destaque especial. A cerimônia não é só um ritual de transformação – ou de extinção, dependendo do tempo e da cultura a que pertencemos. É também o reflexo da sociedade. As relações sociais estão todas presentes no cenário que tem o morto como centro das atenções. Para começo de conversa, ele precisa de um atestado de óbito que declare oficialmente que passou desta para melhor e nisto consiste um dos muitos aspectos jurídicos em torno da situação. A família, os amigos, os parentes e aderentes se aproximam. Cada um com sentimentos diversos. Podem ser de tristeza, como habitualmente, mas (pasmem!) podem ser de alegria. No que depender do patrimônio e do testamento, o defunto, apesar da sua condição de inércia total, tem o poder de transformar vidas. Se não deixar nada, terá ao menos o mérito de ser esquecido rapidamente.

Recordo a primeira vez que fui a um velório, aos 7 anos, numa casa da cidade de Jandira, na Grande São Paulo, onde eu morava. Com o desconto da inocência infantil, estranhei o fato de que o morto era um bebê. Para mim, até então, só gente grande morria. Foi também a primeira vez que fui a um cemitério. Lá, fiquei impressionado com as covas e montes de terra que identificavam os locais de deposição dos corpos. Durante a noite, sonhei que escrevia várias vezes a palavra “cemitério” e fui sacudido por pesadelos. Acordei de madrugada, assustado, para beber água e me acalmar. Eu acabava de ter contato com lições de grande impacto. Como a de que a morte não tem favoritos. E a de que viver é um fenômeno maravilhoso, mas que tem fim.

Passam-se os anos e, muitos velórios depois, adquirimos uma espécie de know-how para enfrentar esses momentos. A começar pela forma como procuramos consolar os familiares e amigos. A nossa rendição é evidente pela constatação de que não há consolo. Procuramos não dar bola fora, como a de perguntar se está tudo bem. O silêncio, o abraço, a respiração em sintonia com a solenidade da despedida, são as melhores alternativas. Nada de lugares comuns e de alto risco como “parece que está dormindo” ou “nem parece que está morto”. Piada de velório, nem pensar. Melhor deixar a piada para a mesa do bar.

Depois, veio o velório de meu pai, em 4 de maio de 1990, uma quinta-feira. Datas, cheiros, rostos, palavras ditas e ouvidas, o lanche de mortadela com tubaína, a sensação de que tudo parou e ficou suspenso no ar, a compreensão de que a existência é tão frágil ao ponto de se dissolver como flores do campo expostas ao sopro do vento mais delicado. O sentimento de perda é intensificado pela constatação de que, enfim, deparamos com aquele novo ciclo em que nunca mais teremos a companhia de quem se foi. É o avesso da magia da vida. Nessa hora fica tudo gravado na nossa memória para sempre.

E, por tudo e por todos, o morto continua lá. Do ponto de vista dele (se isto é possível), o tempo não faz mais sentido e mesmo assim há um horário marcado para o sepultamento. O que comprova que, apesar de tudo, ele continua a ter vínculo com os vivos. Principalmente quando aparecem as ex-mulheres ou os ex-maridos, dependendo do gênero. Se alguns têm vontade de brigar com os outros, perto do morto estabelecem uma trégua. Brigar no velório é desrespeito. Deixam isso para depois, na rua, no cartório ou em qualquer outro lugar.

O velório é o avesso da festa. Enquanto no primeiro há silêncio, a balada é marcada por ruídos. Mas as duas situações têm em comum o fato de serem pontos de encontro. Pessoas que não se vêem há muito tempo de repente se esbarram no velório. Se eram amigas, abraçam-se; se eram inimigas, evitam o contato próximo ou se cumprimentam por protocolo e fingimento. No caso de uma festa, o teor alcoólico dá a medida para a solução de conflitos.

Indescritível a hora da madrugada em que o morto é deixado na sala, sem ninguém por perto. Retrato do abandono. É como se nesse momento ele assumisse a sua verdadeira condição. Ele não atrai mais os vivos – que foram para a cozinha, o quintal, o terraço. Cuidar cada um da sua vida. Ou simplesmente foram dormir e só voltarão na hora marcada para levar o caixão ao cemitério. Ou ao crematório. Se o morto era pessoa boa, falar dele é fácil. Elogiar quem morreu é politicamente correto. Não causa problemas, não dá processo. Se era alguém de difícil tratamento e que aprontou de tudo um pouco, aí é grave. Por conta da solenidade do ambiente, pode até acontecer de o sujeito que era ruim em vida virar gente boa na morte.


Curioso também é existir poesia de celebração do velório e do morto. Veja o que produziu o gênio de Fernando Pessoa (Do poema “Se te queres matar”, do heterônimo Álvaro de Campos):

“Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada…
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu, mera causa ocasional daquela carpidação
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto do que calculas…
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além…
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido…
Depois a conversa aligeira-se cotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia…”

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