Cuidado com as palavras

CARLOS ARAÚJO (Coluna Outro Olhar) – As palavras não são inocentes. Por vezes ousadas, outras vezes ácidas, amargas ou até mesmo divertidas, dependendo da situação, elas têm o poder de ditar os rumos da história, mudar comportamentos, declarar guerras. Por isso, todo o cuidado é pouco com o que a gente diz ou pensa.

Como se isso não bastasse, algumas palavras são verdadeiras armadilhas. Não traduzem exatamente a ideia que se pretende comunicar. Ou deixam dúvida, mais do que esclarecem.

Pioram ainda mais quando são associadas a outras palavras, formando às vezes expressões estranhas, incompreensíveis. Algumas representam denominações técnicas para setores específicos de atividade. Ou dizem respeito a significados diferentes daqueles tradicionalmente conhecidos.

Exemplos de palavras com essas características: declinar, deliberar, contingenciamento, balizamento. No conjunto das expressões, as mais terríveis são “solução de continuidade” e a explicação de que “não há teto” para os casos em que uma aeronave não pode decolar.
Até mesmo profissionais que há muitos anos manejam as palavras como ferramentas de trabalho derrapam nessas pegadinhas. Há muitos anos, em Itu, o governador paulista da época não compareceu a uma inauguração. E ele era muito aguardado. Explicação da assessoria de imprensa: ele viria de helicóptero e não havia teto para o voo.

Na época eu era um foca (repórter em início de atividade) e ouvi essa justificativa com certa perplexidade. Olhei para o céu, certo de que não havia um teto como restrição ou limite para o voo do helicóptero. Pensei em tirar a dúvida, mas desconfiei que a pergunta seria burra demais e eu poderia sair constrangido.

Em nome da cautela, optei pelo silêncio. Só depois uma rápida pesquisa mostrou que o referido teto era um rótulo técnico da aviação para designar falta de condições de voo em termos de vento, nuvens, chuva, umidade do ar e outras variáveis do clima.

Eu também ficava perplexo quando um político, ao anunciar uma guinada nos rumos de determinado serviço público, avisava que “não haverá solução de continuidade”. Até entender que o que ele queria dizer era que o serviço não seria interrompido, demorou. Desconfiei que a linguagem cifrada, tão difícil de ser compreendida, podia conter uma dose de mistério. Muitos anos depois, o referido político continua a usar as mesmas palavras.

Não recordo a primeira vez que ouvi alguém dizer que fulano “declinou” do convite. Não seria melhor dizer que ele “não aceitou” o chamado? Ou quando li pela primeira vez que o projeto de lei entrou em “deliberação” na Câmara de Vereadores. Não seria mais prático dizer que ele entrou em pauta para votação?

Quanto à palavra “contingenciamento”, parece um palavrão. Muito usada pelos governos na hora dos anúncios de cortes de verbas para serviços e obras públicas, certamente os que recorrem a esse substantivo pretendem driblar ou camuflar o real significado da medida que comunicam.

Não seria mais simples traduzir o mencionado palavrão por corte? Provavelmente. Mas talvez seria esperar demais a opção pela clareza por parte de governos que preferem o discurso complexo à mensagem direta na hora de explicar ações impopulares e negativas.
Dirão que essas palavras refletem a riqueza da linguagem. Não sei. Depende do ponto de vista. Palavras que deixam dúvidas na comunicação, além de complicarem o discurso, podem ser mais prejudiciais do que se imagina.

Também nos anos de foca, um dia, numa entrevista coletiva, uma autoridade anunciou que o aeroporto de Sorocaba receberia o benefício do balizamento noturno. Na minha cabeça de então, essa palavra evocava a baliza do exame para tirar a carteira de motorista.
Nessa época eu já não tinha medo de ficar constrangido com uma questão idiota. Interrompi a entrevista para perguntar o que era o tal balizamento. Eu precisava entender o significado daquela palavra para compreender o resto das explicações.

Nessa hora, inconformado com a minha falta de noção, um jornalista veterano foi didático: “Sabe aquelas luzinhas enfileiradas na pista, que indicam o local de aterrissagem dos aviões à noite? Balizamento é isso.” Ah bom, pensei, nada como viver e aprender. E a entrevista prosseguiu, sem mais interrupção. Depois, entre os que viram a cena, talvez tenham caçoado de mim. E isso já não teria importância.

Outras palavras entram para essa estranha galeria como muletas: destarte, outrossim, entretanto, contudo, conquanto, predominam. Nada mais fora de uso, nem mesmo com o desconto de que apareçam em textos carregados de juridiquês e economês. A pretendida sofisticação de estilo provoca o efeito de um tiro no pé.

Um dia, numa reportagem sobre arqueologia para estudar o terreno com pedras coloridas de significados históricos, escrevi, apelando para as cores, que “as pedras azuis predominavam sobre as brancas”. A editora que leu o texto fez uma crítica construtiva: “Não é mais fácil dizer que há mais pedras azuis do que brancas?”

Claro que ela fez a mudança no texto. E encerrou com uma lição: “Quando você tiver duas opções de escrita para comunicar uma mensagem ou fazer uma descrição, prefira sempre a mais simples à mais complicada e o resultado, em termos de clareza e estilo, certamente vai ser o melhor.”

Ainda bem que, nessas horas, o Aurélio está sempre à mão para consulta. Ou o Google. Ou há sempre um colega de trabalho com capacidade e disposição para decifrar os misteriosos significados de muitas palavras. Haja dicionários!

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