O Brasil esperando Godot

CARLOS ARAUJO (Blog Outro Olhar) – Quando escreveu a famosa peça Esperando Godot, o dramaturgo irlandês Samuel Beckett criou um mistério nunca desvendado e que até hoje inspira mil interpretações. O texto não esclarece quem é Godot. Seria a felicidade, a morte ou o sentido da vida? Talvez nenhuma dessas respostas. Para quem é otimista, cuidado: Godot também pode ser um grande engodo.
 
A peça conta a história de dois homens, Estragon e Vladimir, que passam os dias à espera de um ser misterioso. Sabem apenas que ele se chama Godot. Não sabem quem ele é, de onde vem, para quê, nem quando deve chegar ou se está a serviço do bem ou do mal. E, numa completa falta de sentido, também desconhecem por que o esperam ou que comportamento devem ter quando ele chegar.
 
A impressão que fica é que tudo isso tem a ver com o Brasil. Começa pelo fato de que Estragon e Vladimir, embora sejam criações de um irlandês genial, alcançam universalidade suficiente para também serem tomados como qualquer um de nós, brasileiros.
 
Na transposição da história para o Brasil (e no teatro isso é possível, tudo é possível), Godot pode ser a esperança. Feita essa suposição, o desafio é saber qual é essa esperança. Seria a justiça social, o fim do pasto de ódio, o futuro que nunca chega? São tantas as carências e tão profundas as feridas nacionais, que fica difícil identificar a imaginária figura de Godot em sintonia com a esperança tão sonhada pelos brasileiros.
 
E a dificuldade continua. Como acontece com Estragon e Vladimir, a esperança dá o tom do conflito. E ela é abrangente demais. Pode ter relação com a espera de dias melhores, de emprego, de quitação de dívida, da cura de doença, de solução para problemas de toda ordem, gênero e natureza. Para muitos, como na peça de Beckett, nada acontece enquanto esperam. O vazio entra em sintonia com o sentido da vida.
 
Há muitos anos, desde a década de 1960, cunhou-se o rótulo de que o Brasil era o país do futuro. Como um Godot, este era um futuro apenas idealizado, que não tinha data nem qualquer menção de que chegaria a curto, médio ou longo prazo. Várias vezes os brasileiros foram brindados com a sensação de que o futuro havia chegado.
 
Eram ocasiões como o movimento pelas Diretas Já, a promulgação da Constituição Cidadã de 1988, a efetivação das eleições para presidente em 1989, o tetracampeonato de futebol de 1994, o Plano Real, o pentacampeonato de 2002, o ingresso de jovens pobres nas universidades, a descoberta do Pré-Sal, a escolha do Rio de Janeiro como cidade-sede dos jogos olímpicos.
 
E eis que entrou água no chope. As velhas raposas arregaçaram as mangas, empreendendo sofisticadas e dantescas tramas, e a política mostrou com quantos discursos se fazem projetos de podres poderes e de amargas ilusões. Na espiral decadente, para o desencanto de todos, sobreveio o 7 a 1, a derrapada feia no futebol que ganhou proporções de tragédia nacional. A crise hídrica castigou o País naqueles tempos. Um desastre ambiental arrastou lama para o mar. E até uma ciclovia mal feita foi destruída por uma onda. Diante de tantas dores e misérias, a desconfiança se instaurou como marca simbólica de uma geração perdida.
 
Nesse universo, o que diria ou faria Godot? Talvez não dissesse nada. Não há o que dizer nesses tempos em que os discursos perderam a credibilidade, nesses dias e noites em que as palavras não dão conta da realidade cada vez mais caótica e distante da compreensão humana.
 
Talvez Godot não fizesse nada. Não há o que fazer quando todas as promessas não foram cumpridas, todas as fantasias se desfizeram e toda a beleza do mundo se desgastou e ganhou tons desbotados. Ao contrário de épocas passadas, a inércia é o culto da atualidade. As ilusões perdidas também levam à paralisia.
 
E o pior dos mundos ainda é muito provável: o estrago causado pelos desastres vividos nos últimos tempos pode deflagrar uma época de descrédito jamais vista na História. Um termômetro indicador desse rumo pode ser visto quando a propaganda eleitoral obrigatória interrompe a programação na tevê. Habitualmente o som da televisão é reduzido a zero nessa hora. E alguém sempre diz: “É propaganda obrigatória, mas eu não sou obrigado a assistir.”
 
E, sem som, a propaganda perde o sentido. Os mais radicais não suportam a sensação de engodo e desligam a tevê. Outros migram para os canais pagos e a Netflix. Ou mergulham na leitura de um jornal, de um livro, ou na conversa com alguém, ou no WhatsApp, ou no silêncio. Ninguém suporta a desagradável sensação de ser enganado por discursos fabricados.
 
A História mostra destruições ideológicas radicais provocadas por essa onda de descrédito. E, sem saberem o que fazer, muitos renderam-se ao ceticismo mais sombrio.
 
Sem outra alternativa, também há os que mergulham nas fantasias, na religião, na filosofia, na arte, no amor. Cada um busca o refúgio que melhor lhe cabe. Aos que não têm nenhuma saída, resta a opção de ficar esperando Godot.

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