Se a beleza não salvar o mundo

CARLOS ARAÚJO (Outro Olhar) – O filósofo Tzvetan Todorov recordou a mítica frase de Lev Nikoláevitch Míchkin: “A beleza salvará o mundo.” A fala de Todorov foi exibida no programa “Café Filosófico – CPFL” da TV Cultura de 20 de abril de 2013. O filósofo búlgaro (prefere se reconhecer como historiador das ideias) interpretou a famosa declaração de Michkin como a representação da crença na generosidade humana, na democracia, na liberdade, e seu efeito como antídoto contra o grotesco que ameaça abater no chão as esperanças de paz de visionários influenciados por vocação iluminista.
Michkin é o protagonista de “O Idiota”, o mais belo romance de Fiódor Dostoíévski, e imaginar a sua transposição para a sociedade em que vivemos hoje pode ajudar a entender o que somos ou o que deixamos de ser. Michkin é o único justo no meio de pessoas que são feras prontas para atacá-lo. E o lado sublime da vida, que ele inspira, não o impede de se meter em uma rede de intrigas que faz dele a vítima de uma areia movediça. Ser bom não o salva do mal, e esta é a grande lição do romance.
Na sociedade, de um lado temos a ciência e a tecnologia em altíssimo nível de desenvolvimento. Doenças que antigamente eram mortais passam a ser controladas com a eficácia de coquetéis de remédios. Transplantes de órgãos já fazem parte da rotina médica. Lá se vai o tempo em que o cirurgião sul-africano Christian Barnard surpreendeu o mundo ao fazer o primeiro transplante de coração. O homem foi à lua, enviou o robô Spirit a Marte, construiu telescópios com potências capazes de descobrir buracos negros e outras galáxias no espaço. Estes avanços constituem, digamos, a beleza da sociedade.
O incrível é a capacidade humana para, em contrapartida, gerar monstros que muitas vezes utilizam os avanços científicos e tecnológicos criados originalmente para outros fins. O mesmo conhecimento aplicado na cura de doenças pode ser utilizado na instalação de uma ogiva nuclear em míssil que poderá ser lançado contra uma cidade de milhões de habitantes. Outros descobrimentos científicos, ao mesmo tempo em que garantem o aperfeiçoamento dos transplantes, podem ser direcionados para criar estados que são fortalezas com o poder de dominar e subjugar os fracos. O sugestivo equilíbrio da beleza não garante a igualdade entre homens e nações e isto é suficiente para colocar em xeque valores como a paz e a democracia.
A sociedade passa por transformações na sua composição, mas a essência continua sempre a mesma: ambição, interesse em jogo, tudo pelo poder. A chamada Belle Époque, que inaugurou o século XX com boas previsões, não foi capaz de deter a Primeira Guerra Mundial. Enquanto muitos acreditavam num período de prosperidade e paz, que poderiam ser representados por uma figura como Michkin, uma rede de intrigas preparava a carnificina dos campos de batalha. Era uma época em que havia combate de trincheira. Tempos depois, o mundo viveu a criatividade dos artistas da Geração Perdida de Paris. Mas, enquanto isso, também eram fabricadas as condições para as montanhas de cadáveres da Guerra Civil Espanhola e da Segunda Guerra Mundial. A beleza não salvou o homem da morte.
Os extremos sempre deram ao mundo um equilíbrio sombrio. Vejam o início do século 21. A explosão da internet, a ciência, a tecnologia, o conhecimento que desafia limites, tudo isso abrindo as portas de uma era de prosperidade e sucesso. De repente, a catástrofe do 11 de Setembro de 2001 se abateu sobre o mundo como uma espécie de compensação macabra. O primeiro grande atentado da história exibido ao vivo para o mundo inteiro deixou a humanidade completamente acuada. Voar de um continente a outro passou a ser decisão de alto risco. Aviões eram sofisticados equipamentos de transporte, mas podiam explodir em prédios se caíssem nas mãos dos aventureiros da morte.
A Revolução Francesa é outro caso de geração de extremos. Com o generoso e entusiasta lema de “liberdade, igualdade e fraternidade”, os acontecimentos revolucionários de 1789 produziram o Terror, período em que 17 mil pessoas foram executadas em praça pública com o uso da guilhotina e outras 23 mil teriam morrido sem julgamento ou defesa. Entre os decapitados estavam o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta. Este massacre não impediu que, numa Europa pós-revolucionária, Ludwig van Beethoven encantasse o mundo com sua Quinta Sinfonia, o alemão Johann Wolfgang von Goethe desconcertasse toda a literatura com o seu “Fausto”, uma obra-prima, e o espanhol Francisco de Goya reproduzisse o mundo sombrio em telas que sacudiram a arte visual.
As guerras também inspiraram muitas outras manifestações artísticas de peso. Erich Maria Remarque, um soldado alemão da Primeira Guerra, fez da sua experiência nas trincheiras a matéria para a produção dos clássicos “Nada de novo no front” e “Tempo para amar e tempo para morrer”. A Guerra Civil Espanhola gerou outras obras geniais. Duas delas: “Por quem os sinos dobram” (Ernest Hemingway) e “A Esperança” (André Malraux).
Na mesma linha, a seca do Nordeste brasileiro, com suas imagens de mandacarus, chão rachado e sertanejos castigados pelo sol, também inspirou obras de grande qualidade. “O Quinze” (Rachel de Queiroz) e “Vidas Secas” (Graciliano Ramos) são exemplos dignos de figurar entre as melhores obras em qualquer literatura. Concluir que flores também podem surgir em meio a pântanos não é nenhum exagero. Até mesmo a solidão urbana encontrou sua melhor tradução em obras como “Avalovara” (Osman Lins) e “Novelas nada exemplares” (Dalton Trevisan). Só os membros do comitê Nobel não tomaram conhecimento desses autores. Ou o problema é que eles produziram suas obras em língua portuguesa.
A violência urbana, que tanto aterroriza os moradores das grandes cidades, foi decifrada por um especialista como Rubem Fonseca. Os seus contos de “Feliz Ano Novo” anteciparam a crueldade dos nossos tempos e os conflitos de polícia versus facções criminosas. E, enfim, também temos Machado de Assis, um milagre brasileiro.
Não. Ao contrário do que pensava Michkin, a beleza não salvará o mundo. Mas ela ganha sentido e sacode o público quando se converte em literatura, cinema, música. São os momentos em que a imaginação supera a realidade.

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