
Inexplicável tarde…
Evandro Affonso Ferreira
Hoje me deu vontade de ler, mais uma vez, trecho de um texto meu publicado numa plaquete do selo Demônio Negro, cujo título é Cacimba…
Pílula do dia

Elegias Amorosas, de John Donne
Nasceu em Londres, 1572. Estudou em Oxford e Cambridge. É ordenado padre em 1615. Renega toda a sua poesia profana. No final da vida, a fama surge dos poemas ao divino, mas principalmente dos sermões. Em seus poemas de juventude, Donne explora todas as facetas transcendentais da relação amorosa. Já nas Elegias, vai debruçar-se principalmente sobre a vertente mais terrena e profana do processo amoroso.
Trechos do livro:
Leigo da natureza, idiota, ensinei-te a amar,
E nessa sofística, Oh, acabaste por te mostrar
Demasiado perspicaz: Louca, não entendias
Dos olhos e das mãos a linguagem mística.
………………
De pragas sem forma, projetos inacabados
Abusos ainda em bruto, pensamentos corruptos
Sofismas contrariados, inverdades palpáveis
Erros inevitáveis, juras auto-acusadoras:
Estes, como os Átomos enxameando ao Sol,
Aglomerando-se -lhe no seio à espera da Criação.
Entrevista: Nélida Piñon

Escritora visitante das Universidades de Harvard, Columbia, Johns Hopkins e Georgetown. Já recebeu vários prêmios, entre eles Prêmio Juan Rulfo, do México; Jorge Isaacs, da Colômbia; Gabriela Mistral, do Chile; Jabuti, do Brasil. Foi a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras. Escreveu vários livros. Alguns: Vozes do deserto, Uma furtiva lágrima, O calor das coisas e Filhos da América.
A escritora e a lembrança…
Evandro Affonso Ferreira – Costumo dizer que sou muito afetivo, pegajoso, motivo pelo qual gostaria que Deus fosse palpável? Afinal, procurar Deus é querer apalpar plenitudes?
Nélida Piñon – Deus é tão palpável quanto um pedaço de pão. Apieda-se da fome humana enquanto impõe-nos seu intransigente decálogo. E dissemina existir um paraíso onde abrigarmo-nos no futuro. Vale, pois, crer em tal divindade.
Evandro – Agora, com o passar do tempo, tenho conseguido polir os avanços com o verniz da parcimônia. E você? Já se afeiçoou aos recuos? É condescendente com os retrocederes?
Nélida – O mundo educou-me. Mestre e carrasco, ditou as regras passíveis de avanços e recuos. Segundo um código assim imperfeito, propenso a imolar-me, ajusto-me à realidade. Mas quando à beira do abismo, retrocedo. Sei que vivo sem rede de segurança, guiada pelo veneno da paixão que a vida inocula. Aquela poção mágica que Tristão e Isolda consagraram no imaginário ocidental. Assumo então a condição de peregrina. Amparada no bastão, venço o Caminho Francês, a Via Láctea, e chego ao Obradoiro, contemplo a Catedral de Santiago de Compostela. Um prêmio para a alma. Mas não será qualquer retrocesso a trilha natural da morte?
Evandro – É aconselhável, vez em quando, se refugiar, resignante, nos estupefatos?
Nélida – Resigno-me sempre que necessário. Encolho a alma, apago o ímpeto da aventura, e salvo-me. A prudência é respeitável, aconselha que me refugie em algum casulo enquanto os bárbaros, chefiados por Alarico, o visigodo, em plena vigência do século IV, avançam em direção à Roma, levando Agostinho, bispo de Hipona, a fugir em direção à sua Cidade de Deus. Resta-me, então, imergir no coração alheio, onde haja uma réstea de amor.

Evandro – Você já ensinou seu próprio olhar a refutar angústias e todos os seus apetrechos melancólicos?
Nélida – O olhar não merece a prisão da pedagogia que controla o presente e o porvir. Minha mirada carece de liberdade, da habilidade do camaleão que enxerga atrás, luto para apreender o miúdo e o magnífico, que resultam da obra de Deus e dos humanos.
Evandro – Costumo esbarrar, distraído, tempo quase todo na precipitação. E você?
Nélida – Acaso refere-se ao precipício inerente às palavras, aos gestos, ao que se pensa, ao que se amaldiçoa sob o jugo do pecado? O que ronda o perverso e afugenta o sublime? Como náufraga, sempre à deriva, agarro-me à boia lançada por mão amiga. Como seja, sujeito-me aos tentáculos do polvo da minha infância. Da casa galega, em Vila Isabel, terra do samba, onde nasci. De semelhante fusão, Galícia e Noel Rosa, afloraram meu espírito mundano que teima em não envelhecer.
Evandro – Você já aprendeu a farejar com antecedência uma rua sem saída?
Nélida – Ao alargar minha zona de conhecimento, sorvo desmedidas doses de perigo. Ganho noção de que as vias “sem saída”, são insidiosas. Apontam o risco de virmos a ser vítimas de um universo que nos excede. Convém desenvolver o dom de farejar como o perdigueiro que somos.
Evandro – E quando você pretende empreender tarefa de confeccionar caminhos, mas percebe que seus passos não se adaptam às probabilidades peregrinas?
Nélida – Pouco sei das de regras e normas, mesmo quando conto com a serventia da imaginação. Ou recordo os ensinamentos da mãe a alertar-me das tentações maléficas que rondam o gozo da carne. Nada sou, porém, sem trilhar os caminhos do pecado e da revelação. Furtivas promessas da grandeza humana.
Evandro – Você já inventou, para consumo próprio, símbolo gráfico indicativo para ajudá-la a seguir os próprios instintos?
Nélida – Os símbolos que operam na minha fantasia em geral esmorecem. Perduram os que vieram da gênese familiar. Sou marcada pelos rastros da memória, o que ela dita e me eterniza. Muitos oriundos dos universos pagão e cristão, do albor da arte. Portanto, como herdeira dos excessos humanos, adiciono alguns dos modestos símbolos à cozinha, à cama, à mesa onde impera o pão. Dizem-me todos, no entanto, quem sou. Reforçam os pilares da minha crença civilizatória, pautam a escrita que me faz a escriba em permanente estado de amor pela criação literária.
Evandro – E as certezas? Vida toda ultrapassamos, se tanto, o pórtico do talvez?
Nélida – As afirmativas que defendem a fome, o desejo, a morte digna, e tantas outras necessidades, são intocáveis. As certezas cívicas e teológicas advindas dos estertores da guerra, da urgência de privar as comunidades da liberdade, inspiram repúdio. A ditadura das certezas amedronta, aspira sacrificar a humanidade em nome de seus implacáveis princípios.
Fragmento
Fria, impassível. Nada, no presente, faz remexer suas entranhas: nossa ontológica personagem está sempre incólume aos açulamentos extrínsecos, aos frêmitos, aos murmúrios adjacentes.
Jactâncias

Livros de minha autoria
1996 – Bombons Recheados de Cicuta (Paulicéia)
2000 – Grogotó! (Topbooks)
2002 – Araã! (Hedra)
2004 – Erefuê (Editora 34)
2005 – Zaratempô! (Editora 34)
2006 – Catrâmbias! (Editora 34)
2010 – Minha Mãe se Matou sem Dizer Adeus (Record)
2012 – O Mendigo que Sabia de Cor os Adágios de Erasmo de Rotterdam (Record)
2014 – Os Piores Dias de Minha Vida Foram Todos (Record)
2016 – Não Tive Nenhum Prazer em Conhecê-los (Record)
2017 – Nunca Houve tanto Fim como Agora (Record)
2018 – Epigramas Recheados de Cicuta – com Juliano Garcia Pessanha ((Sesi Editora)
2019 – Moça Quase-viva Enrodilhada numa Amoreira Quase-morta (Editora Nós)
2019 – (Plaquetes) – Levaram Tudo dele, Inclusive Alguns Pressentimentos, Certos Seres Chuvosos não Facilitam a Própria Estiagem e Anatomia do Inimaginável.
2020 – Ontologias Mínimas (Editora Faria e Silva)
2021 – Rei Revés (Record)
Foto principal
As fotos que abrem este blog pertencem ao meu futuro livro, Ruínas. Passei um ano fotografando paredes carcomidas pelos becos, veredas, ruas do centro, e de alguns bairros paulistanos.
As imagens apresentam uma concretude pobre e miserável, de ruína mesmo, que na sua própria deterioração encontra rasgos inesperados de um refinado expressionismo abstrato – força das paredes arruinadas e das tintas expressivas do tempo. (Alcir Pécora)
Capa: Marcelo Girard
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